Passamos vidas inteiras desesperadas, embrenhados em problemas e ponderações, em análises detalhadas do quotidiano e reflexões exacerbadas de quem somos, canalizando a paixão para esta compulsão doente e humana que é encontrar o sentido da vida. Encontrar um sentido que seja, uma explicação profunda e inconsciente para tudo o que é, o que se vai fazendo, o que nos acontece, o que pensamos.
São dias, anos passados em letargia, recheados com o que é de comum e medíocre, em que não evitamos sentirmo-nos dormentes ao Tempo – de tanto método e ciência perdemos a capacidade inata de desfrutar a Graça de Viver, de apreciar os dons que nos são dados. Desperdiçamos talentos e vocações, apagamos chamas criadoras para não nos distrair desta psicose louca, de nos prepararmos para uma vida que nunca chegamos bem a viver. Para quê? Para dar desculpas aos pequenos vícios, alimentar com justa causa a nossa preguiça, estimular a insensibilidade ao pequeno – porque nada nos satisfaz, de tão óbvio que se nos torna a intenção motriz de cada acto. Às tantas, de tantas camadas de essências sob as quais nos escondemos e que ansiamos por tornar nossas, camuflamos o que é de basilar e sublime. O Homem vai se perdendo, e como esta (Homem) é uma designação vasta – de uma tamanha nobreza impessoal, que até requer maiúscula – esquecemo-nos de quem ele é: cada um no seu contexto, no seu plano natural, com as suas características e personalidade. Uma unidade individual, e não uma média calculada que se pretende que atinja a chamada “normalidade”.
Vamos burocratizando tudo, sistematicamente, num desenfreado de organização, catalogando a mais pequena peça do jogo da nossa vida. As definições, do que sejam, passam a ser tão específicas que nos restringem ao ponto de elas deixarem de ter significado e utilidade. As sensações, por serem ontológicas, tornam-se inválidas. As percepções, por passarem por filtros pessoais, consideram-se distorções da realidade. Os raciocínios, pelo esforço mental que pressupõem, são demasiadamente obscuros e exigentes para serem aceites. Por calcularmos tantas médias, elaborar tantos padrões e perfis, tentamos chegar ao chamado “ponto de equilíbrio” – evidentemente anormal e suspeito, dado que somos uma combinação incandescente de características diversas –, e recatados nesta tentativa de encaixar, contentamo-nos ao sonhar com originalidade.
Acostumámo-nos ao formigueiro de quem tanto se preocupa em sentir, que nada sente. Percorremos mil caminhos, lemos mil livros em busca de um algo que identificamos prazer – que de tão racionalizado, não é nada –, e fugimos tanto à dor que esquecemos o valor do sofrimento, como elemento construtivo.
Estamos numa sociedade que de Ser não tem nada, que se fechou numa redoma em que nada sente, e que de tal modo se afogou em restrições que não tem espaço nem tempo para respirar a brisa fresca da Razão, e apreciar o que há de verdadeiro no Sensível.
Fomos roubados, tiraram-nos tudo! Até as crenças, até a Esperança, num turbilhão de nadas que nos paralisam. A única força profunda e modificadora, que ainda tem a capacidade de nos moldar, é o anelo visceral e uterino que nesta caminhada sempre nos acompanha, necessário à certeza de que estamos incompletos, inacabados, que nos falta algo que a língua nunca será capaz de atingir. A nossa maior ambição, uma incógnita comum a todos.
Igualdade? Justiça? Fraternidade e comunhão? Paz? Felicidade? Perfeição? A Verdade? Conhecimento absoluto? Tantos conceitos puros que hoje se ficam pelo papel, sobrevoados por ideias distintas e contrárias do mesmo Ideal último ainda não experienciado. Soterrados debaixo de preconceitos que pesam, debatemo-nos, revoltamo-nos em vão, sem a conclusão nenhuma chegar. Nem do que é, nem de como o obter. Contudo, é esta a inconveniência que nos atormenta: a certeza, expressa ou mesmo que amordaçada, implícita, de que não nos bastamos. A maioria desiste desta Busca maior, e os que persistem, aproximando-se perigosamente do seu objectivo, sentem-se contentes e contentados com o terem partido para este jornada – a da derradeira e intemporal procura humana, pelo cerne amorfo de que todos partilhamos e que, sem o viver, todos conhecemos. O Mistério final, inicial, que tudo envolve.
E não digo que algum dia vamos encontrar A Resposta, o inestimável “aquilo” de que todos estamos à procura, e não tem nome. Mas num dia, um longínquo próximo dia, vamos acordar para a vida; para realizar que temos o que é preciso. E através do cumprimento recto do dever – do que tem de ser feito, de tudo o que de bom podemos – aí, chegaremos, em pleno, à Felicidade, à Perfeição, ao Espírito. Nesse dissipar transcendente de trevas e Luz, nesse momento em que o conceito onírico se clarifica e desabrocha num estado atento de vigília; só e apenas aí percebemos que o que importa: a procura, a paixão, é o desejo maravilhoso de nos ultrapassar em cada momento, e o esforço que colocamos para o fazer. Porque nada me falta se em tudo o que faço e com tudo o que me acontece agir verdadeiramente, pondo aí tudo o que tenho e tudo o que Sou. Nesta trilogia sobrenaturalmente humana de vero Amor, Fé e Dever (o cumprimento deste arraigado na virtude da Fortaleza, apesar de todos os obstáculos), nos Tornamos. Tal é a aspiração máxima de existir: a libertação que nos dignifica. Liberdade total é, com os elementos que nos são e vão sendo impostos, as coacções biológicas, psicológicas e sociológicas, (num uno indivisível de quem somos), lutar pelo melhor. Construirmo-nos a nós e ao nosso meio. Ver sintetizado um Todo que dividido seria incompreensível.
O único objectivo e simultaneamente obrigação da nossa existência é, desta feita e de todas as maneiras, Ser. E ganhar esta consciência é fazer a Escolha última: a Felicidade.
E aí temos o verdadeiro viver, o libertarmo-nos do determinismo social amoralizante que nos prende! Porque sobreviver não é nada, e há que distinguir objectivamente adaptabilidade ao Mundo, às coacções externas e aos limites, de conformismo com as deficiências do que nos rodeia. E se não pudermos atingir a realidade numénica directamente? Pois, ser Homem é admitir que se tentou construir uma ponte. A finitude humana não é mais um limite: é a nossa indubitável mortalidade que nos força a, esperançosos apenas na intenção dos nossos actos, e sem deter a Sabedoria total sobre o que nos rege, fazer o melhor com o tempo ilusório e incerto que temos, e tomá-lo como dádiva preciosa para o tornar melhor para o que nos rodeia. O utilitarismo egoísta, a ilha social e amoral em que vivemos não nos aproxima da imortalidade - e ela, mesmo que assim fosse, anularia o pressuposto universal de uma convivência uns com os outros, destruiria a sociedade e tornaria inócua a existência. Cada momento se torna num êxtase, sabendo que para as nossas necessidades virtualmente infinitas de tudo, correspondem recursos limitados.
E depois da vida? Nem a Ciência, nem a Filosofia, nem a Religião lá conseguem chegar. O que transcende esta vida, este mundo, fica assim a cabo da consciência de cada um. Há que depositar Fé – em Deus, se n’Ele se acredita, e em nós próprios, pela certeza da nossa existência – que há-de corresponder às nossas acções e intenções em vida, e que seremos pacificamente confortados pela Luz da Verdade que tudo envolve.
A morte não podia ser assim mais natural e animicamente construtiva – a consciência de que se É e a Felicidade total devem, a cada momento, descansar-nos, porque a uma Vivência em pleno nada falta, e tudo de bom que apreendamos são nada mais que benesses que levamos, neste caminho. Venha quando vier.
from A Ciência Sem Consciência é a Ruína da Alma, Filosofia 2008
quinta-feira, 5 de junho de 2008
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